sexta-feira, 17 de julho de 2009


CABELOS


Mais uma vez aquela estranha sensação se repetia ao televisionar meus sentidos. Novamente me esforçava para abrir os olhos e acreditar que os raios de luz que furavam minha retina não se tratavam de ficção ou mero choque de publicidade duradouro. A manchete era a seguinte: “Vírus encontrado no cabelo de homens e mulheres causa dezenas de mortes em 4 continentes do globo”. Posteriori, a notícia se justificava com imagens terríveis de pessoas no mundo todo cortando os próprios cabelos que, para choque da alma, não se tratava de sensacionalismo. O vírus era uma espécie de “piolho” que passava de pessoa para pessoa pelos pêlos, cílios, sobrancelhas, pubianos ou qualquer parte pilosa da pele e, infectava o sistema neurológico/motor da espécie que fosse atingida, fazendo-a convulsionar e se debater até a morte.

Amedrontados, os Governos em canais de televisão, alertavam que todas as pessoas cortassem os próprios cabelos o mais rápido possível e os queimassem. Como dissera tudo aquilo ainda me soava a filme de ficção.

Aprontei-me. Beijo na testa de pai, xícara de chá com esposa, ao trabalho. Nossa casa ficava em um bairro um tanto longe do centro da cidade. Aos giros da roda do carro que me aproximava da vida citadina um odor incaracterístico ia se tornando mais fétido volta a volta. Virando a esquina do Catalom, dezenas de pessoas com cabelos mal cortados esquivavam-se entre os carros, queimando imagens amauróticas ao chão com olhos cheios de desespero, tapando as narinas com os dedos. Mães cortavam os cabelos dos filhos; rapazes utilizavam-se de presto barbas para se depilarem; e as mulheres misturavam as lágrimas aos cachos, despedindo-se desses com penar tamanho.

Em frente ao departamento, não me deixaram entrar com o carro no estacionamento, fui parado sorrateiramente por uma tesoura de cortar papel oferecida pelo Barbosa que fitava meus cabelos feito gato mirando água de banho. Automático, já tinha cortado meia cabeça até me dar conta que aquelas notícias da TV não eram ficcionais. Estranha sensação: “cortar os próprios cabelos pela primeira vez, calçada do centro da cidade, tesoura de papel e queimá-los”. O dia que seguiu foi o mais incomum possível. Pessoas temendo que os próprios pêlos às matassem, notícias sobre estranhas mortes que correspondiam aos relatos da TV chegando dos hospitais municipais, exército nas ruas, mulheres carecas, homens depilados, meninos chorando ao lhes pelar os olhos, empregados indo embora dos serviços e uma estranha sensação de não se conhecer mais ninguém.



Tempo 1.


Dias se passaram e todos temiam sair de suas casas. Junto do escovar dos dentes, todas as manhãs, reforçava a careca e corria para TV esperando por notícias animadoras. O vírus parecia realmente ser restrito aos cabelos. Havia dados imprecisos sobre os mortos, mas, sem dúvida, eram números de fazer inveja às mais sangrentas guerras. Todos, absolutamente todos os apresentadores de telejornais estavam carecas e imberbes.

“Naquele momento me parecia que, controlado o vírus, o padrão de beleza do mundo mudaria” - devaneios com bolachas de água e sal amolecidas pelo mate quente na boca. Uma hora aquilo tudo iria passar e, a humanidade estaria diante de uma nova ordem de comportamento frente ao que se admira belo.



Tempo 2.


Era impressionante como as pessoas gordas aparentavam muito mais gordas sem seus pêlos, mas, com cabeças de formatos mais homogêneos que os magros. Em contrapartida, as beldades anoréxas que a indústria da moda fazia fabricar, nas ruas, pareciam tão feias quanto filhotes de hamsters (cabeças disformicas sobre costelas aparentes sobre pernas de mais de um metro sobre saltos de 15 cm). Os mendigos aparentavam tão mais limpos, as crianças aparentavam tão menos adultas, os negros não aparentavam terem mudado muito e, os brancos tinham as cabeças mais brancas que os dentes.



Tempo 0.


A filha da Margot tinha um tumor no cérebro e teve de raspar os cabelos para se submeter a uma cirurgia. A Margot, para não criar na filha um sentimento de indiferença, raspou também os próprios cabelos para fazê-la menos triste. E lá saiam as duas pelas ruas, diante os olhares curiosos de todos que passavam por elas. Mãe e filha, com a cabeça desnuda e, na pequena, uma cicatriz enorme suturada por 14 pontos. Margot ainda se esforçava para que as pessoas não discriminassem sua filha, mas, era impossível evitar os olhares curiosos de todos e o choro no rosto da criança.

Quando soube da notícia do vírus, os primeiro tufos de cabelo já haviam aparecido na cabeça daquela criança, enquanto Margot, desnudava semanalmente o visual.

Um dia, saíram de casa, Margot, pequenina e suas carecas, no auge da notícia do vírus e, para encantamento da criança, todas as suas amiguinhas de colégio tinham aderido à sua moda. Ela se sentiu a presidenta de todos os alunos do mundo, vendo que todos admiravam seu estilo e que a imitavam.

Naquele momento algo mágico fez aquela criança desgrudar das mãos da mãe e desfilar triunfante entre seus colegas de jardim de infância, lhes exibindo a única cabeça tatuada da escola: seus 14 pontos de sutura.


THIAGO ROCHA





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2 comentários:

Unknown disse...

Que bonitinho thiago a meninina.. Adorei!! mt massa!

Bj.

Paulo Dourado disse...

A MAIOR beleza, e mais questionada por mim é a da diferença.
Realmente, se a diferença fosse tão encantadora assim, por que tentamos sempre ser tão iguais?

Parabéns Thiago, sem palvras!

 
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