domingo, 20 de setembro de 2009



CRISÁLIDA: COURO DE FARFALHA
Cada um tem seu dia de colheita. O meu.. era aquele.

[chuveiro. xampu. enxágua. condicionador. enxágua. sabão. enxágua. óleo de amêndoas. toalha. pele úmida. cheirosa. fresca.
saia vermelha com flores azeviche. blusa negra de alças. sapatos jabuticaba de delicado laço. a roupa preferida dele. saiu.]

Caminhei sob o manto ensolarado, por alguns minutos, até chegar ao ponto de ônibus. A espera sempre fora uma constante em minha vida e a esperança, sabia eu, um dia extinguiria. Aquela, talvez, fosse a última visita, o meu último destino.

Avistei a jardineira 808. Pele seca. Sorri ao motorista que nunca deixara de esboçar felicidade ao me ver, talvez, porque, fosse eu tão somente um sábado em sua vida. Sentei-me e dancei naquela chacoalhadeira de asfalto bruto, que antes fazia faceiro meu coração.

Cheguei ao ponto, .

desci.

Entrei no café e uma moça simpática veio me atender. Seus olhos tinham nuance de nublagem e sua boca flanelada tornava meus gestos mais sossegados.

- Um capuccino com conhaque e um bolo de queijo, por favor.

PRIIIM.

O bater do pires na mesa de mármore trincara-me. Sentia, agora, o odor cálido e petulante acariciando minhas costelas, trazendo-me lembranças de dias de sorriso com todos os dentes. Por um momento, o vi sentado a minha frente. Com seu olhar matreiro, mãos levemente ásperas, e jeito de quem não se importa mas sempre sentiu. Jeito de quem é de todos, mas nunca se foi.

As bochechas meio caídas, maçãs gostosas, e as sobrancelhas, ora saltitantes, de penas de anu entenderam, e, num lance de estilingue, uma revoada rubra varreu seu rosto dando lugar à indiferença dissimulada e a agressividade defensiva.

Permaneci serena, afinal, não havia muito mais a ser dito. Há tempos me sentia uma borboleta estilhaçada.
Estafada. E no enleio mudo, ele veio acanhado com os dedos, perguntando:

- você não vai voltar pra casa?
- que casa?, perguntei. achava que tinha um marido, mas com você, me sinto tão só como agora. aqui não há ninguém, é melhor assim.

Depois de erguida uma barreira silente, adentrei as pálpebras num pôr-de-sol freiante, dizendo:

- eu nunca tive casa, você sabe disso.
- é, eu sei, disse com a fala sentida escorregando pela mesa.
Perguntei a ele o que fazia ali, não disse nada.

O nada, as vezes, é a pior resposta que existe.

Contemplei-o por um longo tempo, alvorando sua teimosia de cereja, seu peso de colméia, seu riso que me enchia ares de passarinho. Olhos de mel que ora revelavam florestas macias e aconchegantes, ora queimadas chispantes. Seus braços de lírios, suas pernas de ninho, suas meias frouxas de centeio, cheiro de noz.

Talvez o amasse antes mesmo de ser concebido, sempre seria minha mata escolhida. Peguei minha cesta, colhi os grãos de café, guardei o último gole, o mais gostoso. Empurrei-lhe a xícara, tirei do peito uma ameixa gigante, dando-lhe. Ele a guardou. Eu, eu levantei e fui embora.

Olhei para trás,
olhei mais uma vez,

sabendo dos meus olhos de neblina, sabendo que aquele lugar estaria sempre vazio.. Do entardecer, ali, encenado, restaria apenas meu aroma de amêndoa e minha amendoeira no casulo.


Ísis Shibasaki






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